isso, e isso, e isso, e A Canção de Aquiles | Madeline Miller


Quando eu li as primeiras páginas desse livro, eu soube que me destruiria na mesma proporção que me tornaria uma pessoa melhor, maior até. Eu sabia da história há pelo menos uma década, mas com o conhecimento de uma criança.


Na infância, meus olhos brilhavam por deuses, heróis corajosos e profecias, quando eu ainda era principiante no jogo de passar a noite em claro presa em contos de mitologias e me perguntando como existiam pessoas que ousavam discutir a existência daquilo. Era claro que era tudo real. 


Hoje, 10 anos depois, a única coisa diferente é que eu não sou mais principiante nesse jogo. Meus olhos ainda brilham, mas de uma forma mais intensa, dessa vez com lágrimas, ao me dar conta de que realmente não eram só mitos, que hoje ainda existem loucuras que a obsessão pelo próprio desejo causa, que não era só um traço de personalidade de deuses, e sim de pessoas.


Nessas horas eu agradeço pela dádiva de ser uma pessoa sensível, de poder amar, reconhecer o amor, e desejar ser amada como tal. Agradeço por ter o privilégio de ler histórias como essa, e por saber encontrar tantos paralelos com o mundo moderno.


Os mitos falam de semideuses, criaturas que carregam os traços admiráveis de um deus e a parte melancólica de um humano. Acho que todos somos semideuses, se pensarmos assim.


Nossa parte divina é nobre, elevada, aquela capaz de amar, cuidar e doer por empatia, e a nossa parte mortal, é a que nos arranca a vida quando sentimos sede de poder e orgulho, quando somos tomados pela ganância.


Mas essa história também carrega a mesma essência de dualidade dos semideuses. A Canção de Aquiles é sim uma história trágica, mas é uma história sobre uma tragédia de guerra, não tragédia de amor.


É uma das centenas versões de "A Ilíada", originalmente escrita por Homero, e a responsável por me fazer mandar áudios aos prantos para a minha melhor amiga em plena madrugada.


A autora é completamente apaixonada pelo poema original e criou a história a partir da determinação em solucionar uma das maiores dúvidas que o poema deixa: quem era Pátroclos para Aquiles?


"Aquiles amava Pátroclos como a sua própria vida", disse Homero, e as apostilas de história entenderam como "eles eram grandes amigos, somente, homossexualidade é proibido".


A autora passou sua adolescência e vida adulta buscando evidências para sua maior certeza pessoal, de que os dois eram amantes, tendo inclusive se dedicado a aulas de grego para poder ler o poema em sua língua original, pois sabia que o real significado das palavras teriam se perdido em traduções.


Você não pensou que os dois fossem primos, como no filme protagonizado pelo Brad Pitt, pensou?


Nessa busca pelo significado puro, temos a conclusão de que sim, Aquiles e Pátroclos eram amantes, mas isso não precisava de uma definição no poema de Homero, que inclusive não possui o hábito de descrever romances de forma explícita. 


O amor era sabido por todos daquela época, afinal, a visão desse relacionamento como romântico era comum na antiguidade.


Olhares, proteção, nomes gravados em lápides e cinzas enterradas juntas dizem por si só, não precisam de explicação didática. Para mim, a maior prova do romance reside em como Aquiles encarou e lidou com o luto.


Tanto na ilíada quanto na releitura de Madeline, ele se recusa a queimar o corpo de Pátroclo, insistindo em manter o cadáver em sua tenda, onde constantemente chora e o abraça, apesar da reação horrorizada de todos ao seu redor.


A descrição desse sentimento tão íntimo de devastação me pareceu falar de uma intimidade legítima e incontestável dos dois.


Talvez seja a maior dor, no final das contas, ser deixado na Terra quando outro se foi.


O que me incomoda é que, para os historiadores, Pátroclos era insignificante. Mas como pode alguém causar essa reação em um herói que lidou com centenas e centenas de mortes não ter relevância alguma?


Movida por essa constatação, Madeline Miller resolveu escrever sua própria versão de A Ilíada, dando vida ao outro Pátroclos, ao verdadeiro "calcanhar de Aquiles", aquele que vigiava um pé de figo por meses para colher os mais suculentos frutos, aquele que se apaixonou com isso, e isso, e isso.


Uma das coisas que mais me cativou nessa leitura foi a abordagem do amor, companhia e redenção. A forma como outros relacionamentos platônicos foram desenvolvidos quase arrancou meu coração do peito, mas eu morri em combate quando Aquiles e Pátroclos me ensinaram o que é entrega.


A escrita da autora é impecável, realmente belíssima e os relatos são carregados de comparações emocionantes e repletos da mais tocante poesia. Tudo foi retratado de forma clara e direta e em nenhum momento a história se tornou maçante.


"Mas em uma vida solitária, há raros momentos em que outra alma mergulha perto da sua, como estrelas uma vez por ano escovam à terra. Tal constelação era ele para mim."


A história se inicia com a infância de Pátroclo, quando ainda pequeno sofria com a melancolia de seus medos e sensações de inferioridade, seu exílio e refúgio na ilha de Fítia. Lá, ele conhece o príncipe Aquiles e destrincha uma bela amizade de anos.


Mais da metade do livro se passa narrando a adolescência e fase adulta dos dois, as quais foram destinadas aos treinamentos de guerra, medicina e amadurecimento, para então mergulhar na trágica guerra de troia.


O amadurecimento dos personagens possui uma profundidade tão intensa que os aproxima absurdamente da realidade, o que gera uma forte conexão entre os heróis e o leitor, dando aquela sensação de que você os conhece tão bem quanto conhece a si mesmo.


Além de iluminar as piores e melhores vertentes da existência humana, não puder deixar de notar a forma que a autora expõe (para mim, com clareza!) como os desafios da antiguidade são tão similares com os de hoje, e é impossível diferir dos eventos humanos.


É sobre poder, força e razão, mas é mais sobre a lealdade e companhia. Sobre reconhecer alguém em qualquer circunstância, até mesmo na loucura.


"Eu o reconheceria apenas pelo toque, pelo cheiro; eu o reconheceria cego, pelo modo como exalava o ar e como seus pés batiam na terra. Eu o reconheceria na morte, no fim do mundo."


Pelo mesmo motivo que Madeline quis ler A Ilíada em grego, eu quis ler esse livro em inglês, e recomendo que você faça o mesmo!


Agora, eu sou feita de memórias (and this, and this, and this!) e levarei para sempre essa história no meu coração. Que grande presente, vale a pena cada página. 




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